Durante muito tempo, os jornais trouxeram seções de língua portuguesa, em que se discutiam problemas gramaticais. Os leitores mais antigos se lembrarão das célebres “Questões Vernáculas”, de Napoleão Mendes de Almeida, e de outras colunas do gênero, que alguns recortavam do jornal impresso e colecionavam em pastas ou álbuns. Com o tempo, as colunas perderam a sisudez do passado, mas sobreviveram na imprensa, tendo experimentado até mesmo um período de grande popularidade, que, afinal, também passou. Mesmo assim, fora de moda, a correção gramatical – ou melhor, a incorreção – continua incomodando muita gente. Então, proponho aqui um momento “vintage”.
A leitura de jornais, de sites e mesmo de livros editados mais recentemente nos oferece uma boa mostra de como anda a língua portuguesa. Um traço curioso que tenho observado diz respeito à regência do verbo “agradecer”. Nos já velhos tempos, agradecíamos alguma coisa a alguém e, se precisássemos substituir a pessoa por um pronome, logo sacávamos da algibeira o “lhe” ou o “lhes”, conforme a conveniência. Hoje anda muito comum “agradecer fulano” (sem o “a”) e “eu o agradeci”, o “o” usado em relação ao mesmo fulano. Será que as coisas mudaram?
Bem, ao que parece, tudo começou quando os próprios gramáticos tomaram como correta a construção “agradecer a alguém por alguma coisa”. Essa preposição “por” introduziu uma ideia de causa ou motivo e, então, passamos a agradecer por um convite, agradecer pela atenção e assim por diante. É claro que a construção original, com objeto direto e objeto indireto, continuou correta, portanto quem quiser que continue a agradecer convites e, é claro, a atenção – sem a preposição “por”. A presença da preposição pode ter levado à supressão do “a” antes da pessoa a quem se destina o agradecimento, de modo que o verbo continuaria tendo um objeto direto, mas, vamos lembrar, essa construção ainda não é consagrada pela norma culta. O objeto de pessoa continua sendo indireto (“agradecer a alguém”, “agradecer-lhe”), mesmo que o objeto direto seja transformado em elemento causal (“agradecer-lhe pelo convite”).
Estamos nesse ponto da reflexão quando nos aparece a informação na imprensa de que a cantora Preta Gil tinha ido às redes sociais para “agradecer ao carinho dos fãs” e contar que faria novos exames de saúde. Essa alteração desafia a nossa criatividade. A preposição “a” bem estaria antes de “fãs”, mas não o está antes de “carinho”. Ao dizer “carinho dos fãs”, esse é o objeto do agradecimento, aquilo que se agradece (“os fãs”, nesse caso, são um elemento acessório de carinho, como em “seu carinho”, “carinho de alguém”) – assim, ao “agradecer o carinho dos fãs”, o verbo teria apenas o seu objeto direto, pois o que seria o indireto (“os fãs”) passou a integrar o objeto direto (“agradecer ao carinho dos fãs”). Existe, porém, a possibilidade de separar os objetos direto e indireto, o que resultaria na construção “agradecer aos fãs o carinho”. Desse modo, damos o mesmo valor a cada um dos elementos, aquilo que desperta o sentimento de gratidão (o carinho) e as pessoas a quem dirigimos essa gratidão (os fãs).
São muitas as questões, como essa, de regência. A “apologia de alguma coisa” virou “apologia a alguma coisa” e o verbo “corroborar” ganhou o acompanhamento de uma preposição “com”. Uma nota publicada na imprensa informava que a nomeação do novo diretor de uma fundação “corroborava com a transparência e a segurança” com que ela estava atuando desde o início das investigações. Esse uso está longe de ser ocasional e pode ser fruto de má interpretação do significado do verbo. “Corroborar”, transitivo direto, é confirmar, comprovar, ratificar, mas pode estar sendo tomado como “concordar com” ou “estar em consonância com”, daí o aparecimento da preposição. É uma hipótese.
Se esses casos deixam alguma margem para discussões, outros há que mais parecem lapsos. Dia desses, Milei e um empresário “fizeram um juramento sob a Torá, o livro sagrado do judaísmo”, segundo pudemos ler em um jornal. O mais provável é que o juramento tenha sido feito sobre a Torá – com as mãos postas em cima do livro sagrado, não embaixo dele. É razoável haver alguma confusão entre palavras tão parecidas, certo?
Outra nota reproduzida em um jornal trazia o seguinte texto: “não há evidências de que os funcionários agiram visando maltratar o animal e, como consequência, levá-lo à morte e, tão pouco que, prevendo esta possibilidade, assumiram o risco desse resultado”. Aqui certamente o redator da nota quis dizer “tampouco”: não há evidências de que tenha ocorrido uma coisa, tampouco de que tenha ocorrido outra. Bem simples. “Tampouco” é o mesmo que “também não” – “tão pouco” é outra coisa!
Como pode verificar o leitor, tenho minha coleçãozinha de casos curiosos. Um deles diz respeito ao uso do adjetivo “jovial”, que não quer dizer “jovem”, mas, sim, “alegre”. Uma reportagem, que tratava de cuidados com a pele, trazia, na versão impressa, uma chamada que recomendava hábitos e sono adequado para garantir uma “pele mais jovial” e, na versão online, convidava o leitor a conhecer os procedimentos não invasivos decisivos “para manter a jovialidade da pele”. Certamente se pretendia falar em “pele jovem” ou com aparência jovem. Melhor não confundir juventude com jovialidade, porque há velhos bem joviais por aí.
Questões como essas foram saindo de moda, em parte, porque o mantra de que a língua muda deu um salvo-conduto às hesitações, às confusões e aos enganos, como se nada houvesse a aprender, e, em parte, porque a ideia da correção foi associada ao conservadorismo político mais tacanho, como se houvesse algo de libertário (ou, pelo menos, de progressista) em rejeitá-la. Enquanto nos distraímos com essas disputas, a inteligência artificial vai corrigindo os errinhos sem alarde.
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