Pessoas de ascendência italiana puderam, durante décadas, vasculhar suas árvores genealógicas, encontrar um antepassado italiano e solicitar a cidadania italiana, garantindo um passaporte poderoso que permite a entrada em mais países sem visto do que a maioria das outras nacionalidades.
Mas tantas pessoas tentaram obter esse benefício que suas solicitações congestionaram os tribunais, consulados e cartórios da Itália, paralisando quase completamente outros serviços.
Menos pessoas de ascendência italiana agora poderão obter a cidadania depois que o governo restringiu a elegibilidade apenas àquelas com pais ou avós italianos.
O decreto, anunciado na sexta-feira (28) e com efeito imediato, elimina uma disposição que permitia que qualquer pessoa buscasse a cidadania se conseguisse provar —muitas vezes por meio de um processo longo e trabalhoso— que tinha um antepassado italiano vivo após a unificação do país em 1861.
Antonio Tajani, o ministro das Relações Exteriores da Itália, disse que as regras mais rígidas foram motivadas por “anos de abusos” cometidos por pessoas que tinham poucos vínculos com o país e só cobiçavam o passaporte.
A Itália concedeu cidadania, nos últimos anos, a um número crescente de sul-americanos, afirmou Tajani, sugerindo que muitos dos novos italianos desejavam principalmente viajar pela Europa ou para os Estados Unidos. “Ser cidadão italiano é algo sério”, disse ele em uma entrevista coletiva. “Não é um jogo para conseguir um passaporte no bolso e ir fazer compras em Miami.”
A medida surge no momento em que muitos países estão repensando quem pode ser cidadão, em resposta ao forte aumento da migração. Na Itália, como em grande parte da Europa, a lei de imigração tem sido baseada principalmente em laços de sangue, permitindo ao país manter conexões com os descendentes de milhões de italianos que fugiram da pobreza e da guerra nos séculos 19 e 20.
Ainda assim, a Itália enfrenta uma crise demográfica, com o envelhecimento da população e o declínio da taxa de natalidade. Críticos afirmam que é injusto conceder cidadania a pessoas com ascendência distante enquanto nega a cidadania por nascimento aos filhos de imigrantes, incluindo aqueles com status legal. A Itália só permite que filhos de imigrantes legais se tornem cidadãos ao completarem 18 anos, e desde que tenham residido no país desde o nascimento.
Tajani disse que o governo vai propor uma lei que permitirá que filhos ou netos de cidadãos italianos obtenham a cidadania se residirem na Itália por dois ou três anos, em vez dos cinco ou dez anos exigidos para cidadãos europeus e outros estrangeiros.
O fato de o governo da primeira-ministra Giorgia Meloni, de perfil nacionalista, ter optado por impor restrições à cidadania por sangue surpreendeu e irritou alguns setores da direita política, que argumentam que o governo deveria preservar a identidade cultural e étnica italiana.
Mas Tajani afirmou que uma indústria paralela lucrativa estava cobrando milhares de dólares de aspirantes a italianos para encontrar registros ancestrais e apresentar pedidos de cidadania. “Não podemos incentivar trapaças ou cidadanias falsas”, disse ele, mostrando impressões de anúncios dessas empresas em redes sociais. Um deles oferecia uma promoção especial de Black Friday.
O aumento nos pedidos está sobrecarregando algumas instituições italianas, com tribunais lutando para processar as solicitações e pequenas cidades sendo inundadas por pedidos de registros antigos de nascimento, óbito e casamento. As vagas nos consulados são tão escassas que cidadãos italianos no exterior costumam acessar um portal online à meia-noite (horário da Itália) para tentar garantir uma.
O número de cidadãos italianos no exterior cresceu cerca de 40% na última década, passando de 4,6 milhões em 2014 para 6,4 milhões em 2024, em grande parte por causa dos novos cidadãos, afirmou Tajani. A Itália concedeu cidadania a cerca de 30 mil pessoas na Argentina no ano passado, contra 20 mil em 2023, e a cerca de 20 mil pessoas no Brasil, contra 14 mil. (Um argentino que recebeu cidadania italiana ao visitar Roma em dezembro foi o presidente Javier Milei.)
Alberto Teso, prefeito de San Donà di Piave, uma cidade próxima a Veneza, disse à emissora pública RAI, em fevereiro, que metade de sua equipe trabalhava em tempo integral em pedidos de cidadania —a maioria de brasileiros— que “nunca colocariam os pés em nossa cidade”.
Mesmo antes de o decreto ser anunciado na sexta-feira, a Itália já havia começado a rejeitar mais pedidos de cidadania.
Em outubro, o Ministério do Interior publicou um memorando baseado em decisões recentes da Suprema Corte italiana, que interpretou de forma mais restritiva a lei de cidadania. O documento dizia que, se os antepassados italianos dos requerentes tivessem adquirido voluntariamente uma nova nacionalidade enquanto seus filhos ainda fossem menores, essas crianças perderiam automaticamente a cidadania italiana. Isso significava que a cadeia de cidadania estaria quebrada.
O memorando deixou muitos requerentes com poucas alternativas, mesmo que já estivessem envolvidos no processo há anos. Fóruns no Reddit e grupos no Facebook dedicados a compartilhar dicas sobre como obter a cidadania se encheram de relatos lamentando o tempo, o esforço e o dinheiro perdidos.
