Quando eu tinha 20 e poucos anos, ir na D-Edge com os meus amigos toda sexta-feira era um ritual religioso —não faltávamos nunca. Naquela caixa preta com paredes piscantes e som cristalino, paquerávamos outros rapazes e ouvíamos house music da melhor qualidade enquanto praticávamos o culto ao DJ.
O DJ era o todo-poderoso que embalava a pista com a sua seleção musical, enquanto vivíamos nossa sexualidade sem medo de sermos julgados. Isto era antes de 2010, nos primeiros anos do clube, uma época sem pautas sociais afirmativas em relação à sexualidade e em que as baladas se dividiam em duas categorias excludentes —hétero ou gay.
Viver naquela boate o que nem sempre era possível fora dali era só parte do atrativo. Havia ainda o deleite sensorial da D-Edge, com suas paredes de LED de ares futuristas do início do século 21 e um sistema de som à época considerado a Ferrari das caixas acústicas, por permitir a audição pura da música em volumes não ensurdecedores. O clube apontava para a frente.
Mais de 15 anos depois, no culto religioso que aconteceu na D-Edge na última segunda-feira (10), nenhum dos elementos de vanguarda do clube estava presente. Ao abrir sua balada para seguidores de Jesus, o empresário e DJ Renato Ratier fez da casa noturna um simulacro de igreja e, com isso, permitiu a entrada de pensamentos há muito ultrapassados, como a cura gay.
A certa altura do culto, um fiel que se definiu como “mona” disse que cogitou se jogar no rio Tietê. “Mona não morre, vira purpurina”, afirmou, antes de contar à plateia que Jesus o “pegou pelas mãos” e o curou “daquela doença”. Ele contou ainda que está casado com uma mulher há 38 anos. “Deus ama o pecador, não ama o pecado.”
A pista de dança foi eliminada e deu lugar a fileiras de cadeiras para os fiéis sentarem. O ambiente estava iluminado por uma luz branca, daquelas de padaria, emprestando a tudo um ar de fim de festa. Nada a ver com os LEDs charmosos, alto-astral e coloridos que são uma das marcas do clube.
As batidas da house e do techno, mandadas para as caixas de som por DJs brasileiros talentosos ou pelos principais nomes da eletrônica do cenário internacional, deram espaço à uma banda com guitarra e bateria de valor artístico duvidoso —o papel do grupo, no culto, era fazer música incidental como base para a cantora Baby do Brasil pregar.
Enquanto isso, Ratier, o dono, uma das pessoas que mais fizeram pela cena eletrônica do Brasil —lançando DJs hoje com carreiras estabelecidas e sempre indo atrás do que havia de mais moderno na música para dançar— passeava pelo lugar, de Bíblia na mão, vestindo uma camiseta com a palavra “aleluia” escrita em letras gigantes nas costas.
Comentei com um amigo com quem frequentei por anos a D-Edge que o clube ia em direção ao passado ao dar espaço para ideias conservadoras enquanto, ao mesmo tempo, abraça sem pudores a pobreza estética, seja ela visual ou sonora. Ele respondeu, ironicamente mas com uma pitada de seriedade, que talvez seja justamente o oposto.
No contexto de um mundo que se volta para valores tradicionais, impulsionado pela explosão das igrejas evangélicas e uma sucessão de governos de extrema direita dentro e fora do Brasil, a D-Edge estaria, na verdade, antenada com o espírito do tempo e, quiçá, indo em direção a um triste futuro dominado pelo conservadorismo.
É de se perguntar por que um clube que foi símbolo da vanguarda na pauta de costumes agora dá espaço para valores do ideário de Donald Trump e por que, tendo entrado em listas de melhores baladas de música eletrônica do mundo, aceita a miséria estética. Já não há uma infinidade de lugares no Brasil para quem reza por estas cartilhas?
Por um momento, todo mundo que frequentou o clube e teve com o lugar uma ligação afetiva se perguntou se a D-Edge iria substituir o techno pelo gospel, o culto ao DJ pelo culto a Jesus. Com a maré de reação negativa que Ratier recebeu, devido ao discurso da cura gay e a uma fala de Baby do Brasil durante o culto na qual ela defende que se perdoem abusos sexuais, a resposta parece ser não.
Menos de 48 horas depois do culto, com a imagem arranhada, ele divulgou uma carta na qual se distancia dos discursos e reafirma o compromisso do seu clube com a diversidade sexual, além de se posicionar claramente contra a violência sexual e a fala de Baby. O empresário também afirmou que nunca mais fará cultos na D-Edge.
Mas agora o estrago foi feito. A nuvem do fundamentalismo estacionou sobre o D-Edge, e os frequentadores vão ficar com a dúvida se aquela pista de dança —antes um lugar acolhedor a todos, como deve ser na noite eletrônica—, é de fato laica.