“O Crematório Frio”, livro do jornalista József Debreczeni lançado na Iugoslávia em 1950 e publicado agora no Brasil, levanta a seguinte questão: como escrever o Holocausto? Talvez mais importante, como ler o Holocausto? Como evitar a fadiga e a banalização relacionadas ao assunto?
Por um lado, o horror do Holocausto é público e notório; por outro, ao mesmo tempo em que estamos perdendo os últimos sobreviventes dele, começa a se fortalecer um negacionismo histórico impensável poucas décadas atrás. Mas, se a cura para a ignorância é mais educação, o excesso dela também pode banalizar os fatos.
Em 1972, Jerry Lewis chegou a filmar uma comédia sobre o Holocausto, mas nunca a exibiu —foi opinião geral de que seria de mau gosto. Mas mais recentemente, em 1999, o italiano “A Vida É Bela”, de tom leve e algo cômico, levou o Oscar de melhor filme estrangeiro.
O tema também invadiu os livros infantis. “O Menino do Pijama Listrado”, do irlandês John Boyne, lançado em 2007, foi severamente criticado por especialistas apesar de ter sido best-seller mundial. Por fim, em 2011, uma companhia teatral carioca montou o espetáculo “Holoclownsto”, onde seis palhaços em um trem fechado estavam presumivelmente a caminho de um campo de concentração.
Perdemos nossa sensibilidade ao Holocausto? Banalizou-se o mal?
“O Crematório Frio” foi publicado em húngaro, uma língua menor dentre as várias da Iugoslávia. Talvez por isso tenha tido pouco impacto: foi considerado soviético demais para ser publicado no Ocidente e judeu demais para os países da Cortina de Ferro.
Em 2023, com o lançamento de sua tradução em inglês, ele finalmente ganhou o mundo. Mas tanto na época em que foi publicado quanto hoje —no contexto de uma extrema direita negacionista ascendente no mundo, incluisive na Alemanha e na própria Hungria—, é sempre um livro do contra.
O enredo é simples de resumir, difícil de ler a fundo: Debreczeni e toda sua família, judeus húngaros morando na Iugoslávia, são deportados para campos de concentração nazistas no começo de 1944. Só ele sobrevive.
Transferido de um campo a outro, achando que o próximo não pode ser pior e continuamente se enganando, Debreczeni acaba em um campo-hospital, que ele apelida de “crematório frio”. Quando os soviéticos liberaram o local, em abril de 1945, ele estava se recuperando de tifo e pesava 35 kg.
O grande trunfo da prosa de Debreczeni é ser factual, seca, objetiva. Excelente observador, ele registra tudo com olhar de jornalista, sem sentimentalismos. O que, naturalmente, só ressalta o horror daquilo que ele está contando.
Mas não é fácil para nós, hoje, apreciarmos o verdadeiro poder da prosa de Debreczeni. Como no conto de Jorge Luis Borges em que Pierre Menard esquece quatro séculos de história para reescrever “Dom Quixote” exatamente como Cervantes o teria escrito, cabe a nós esquecer 80 anos de livros infantis, comédias cinematográficas e até mesmo espetáculos de palhaçaria para só assim tentar recuperar o fresco horror de seus primeiros leitores. Cada livro sobre o Holocausto deve ser lido como se fosse o primeiro livro sobre o Holocausto.
“O Crematório Frio” é bom, especialmente quando esmiúça as relações de poder dentro dos campos, quem tiranizava quem em nome de quem. Mas, entre tantas obras sobre o assunto, pode não ser a melhor introdução a quem não é especialista.
A obra-prima literária sobre o Holocausto provavelmente ainda é o relato “É Isto Um Homem?”, do italiano Primo Levi, escrito em 1947 e publicado no Brasil pela Rocco. Também são depoimentos importantes “A Noite”, de Elie Wiesel, e “Em Busca de Sentido”, de Viktor Frankl.
Na ficção, os contos do polonês Tadeusz Borowski dificilmente serão superados: ele estava inédito no Brasil até a excelente coletânea “Adeus, Maria” ser publicada pela Carambaia no ano passado.
Por fim, o documentário “Shoah”, realizado pelo francês Claude Lanzmann em 1985, talvez seja a melhor e mais impactante obra do século 20 sobre o assunto, por ter a coragem de explorar mais a fundo do que qualquer outra o maior horror do século.