Chega sem aviso, espontaneamente (epa!), o pensamento de que, entre as muitas armadilhas que a comunicação digital em rede espalhou no nosso caminho, o culto da espontaneidade é uma das mais insidiosas.
De repente, veio o tsunami da desconfiança de tudo o que na comunicação de massa era –e é– construído, produzido, editado, padronizado; tudo o que exige certo apuro, além do cumprimento de determinadas regras de higiene.
Talvez o pessoal tenha abusado da limpeza, da cara de pau? É claro que a “mensagem” dos meios de comunicação sempre foi conservadora –e portanto hipócrita– num nível político profundo.
No campo dos costumes, não necessariamente. A busca da audiência levou a sociedade de massa a passar por transformações de impacto profundo ao longo do século 20, quase todas no sentido da ampliação dos direitos e das margens de liberdade individual.
Ainda assim, a denúncia da hipocrisia inerente aos meios de comunicação de massa –agentes de um modelo em que um fala e multidões ouvem, hoje em vias de superação– acompanhou esses entes desde o berço.
Ninguém nunca teve dúvida de que sua posição era no limite comprometida, porque no fim das contas –e às vezes no começo também– sujeita aos condicionantes econômicos e ideológicos de quem banca o caro lugar de emissor.
Quando o preço do lugar de emissor despencou no mercado, já neste século, e de repente todo mundo “podia falar”, talvez a valorização do tosco e do malfeito fosse a princípio uma reação saudável a décadas de “padrão Globo de qualidade”.
A palavra “saudável” não parece se aplicar mais. Como poderia, se meninas de 17 anos que nada sabem fazer têm mais seguidores interessados em sua rotina do que a audiência média de nossos telejornais?
O culto da espontaneidade chegou mirando nas taças de cristal do núcleo Leblon da novela, no terno cafona do apresentador, no sorriso falso dos anúncios, no texto empolado dos editoriais de jornalão.
Acertar, acertou. Mas mandou pelos ares, como danos colaterais, muito profissionalismo e muito conhecimento, além de alguns códigos de ética que, se não eram sempre obedecidos, pelo menos existiam.
O respeito à ciência e a certas hierarquias de saber eram coisas dadas, antes de tanta espontaneidade. Imagine que alguém previsse, em 1988, que no futuro um estudante de administração de empresas de Araraquara desafiaria o Prêmio Nobel de Física em praça pública, recebendo o apoio de centenas de semelhantes.
Todos diriam que o vidente delirava. Que deixasse de fazer humor –aquilo nem era tão engraçado. No entanto, aqui estamos.
Quando se começa a escrever, é comum acreditar que, por uma lei de espontaneidade ou preguiça, a primeira versão de uma história, cena ou pensamento que se lança na página é a melhor possível, pois “natural”.
Na verdade, é o contrário: embora possa haver casos em que se encontra de saída o ajuste entre o quê e o como de um texto, o mais frequente é que a primeira versão precise ser trabalhada.
Acho que ainda precisaremos trabalhar bastante essa espontaneidade toda que anda por aí.
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